Introdução
Este texto apresenta sinteticamente o projeto Arco Maior, descreve os traços principais da sua pedagogia, das opções de gestão curricular e do seu modelo organizacional (fez parte de uma comunicação apresentada por Joaquim Azevedo, em janeiro de 2025, no congresso do projeto europeu RESUPERES, na Universidade do Algarve).
A
Apresentação do Projeto Socioeducativo
O Arco Maior é um projeto socioeducativo que acolhe e educa jovens que foram marginalizados nas escolas públicas das cidades do Porto e de Vila Nova de Gaia e que se encontram em abandono reiterado e em elevado risco de exclusão social.
Recebemos adolescentes, a partir dos 15 anos, oriundos geralmente de famílias pobres e a viver em bairros sociais, vítimas de negligência e abandono por parte de um dos pais ou de ambos, que cresceram em ambientes de violência familiar e de abusos, que evidenciam perturbações da sua saúde mental e que apresentam percursos escolares repletos de comportamentos disruptivos e de violência institucional.
No Arco Maior eles podem concluir um percurso escolar: o 6º e o 9º ano e, caso ainda estejam dentro do arco da escolaridade universal e obrigatória (que decorre até aos 18 anos), podem realizar também o 12º ano (mesmo com mais de 18 anos também o podem fazer).
O Arco Maior não é nem quer ser uma escola, é uma resposta socioeducativa transitória, gerida pela Associação Arco Maior, em estreita articulação com o Ministério da Educação, e apoia alunos que “abandonaram” dezenas de escolas públicas destas cidades e de concelhos vizinhos.
Desde 2013, recebemos já mais de 550 jovens e temos, atualmente (ano letivo 2024/25), abertos quatro polos, com um total de 107 alunos.
O nosso maior sonho
Para que fique claro o que somos e o que pretendemos, temos sempre o cuidado de deixar escrito e assinalado em todo o lado que o nosso maior sonho é deixar de existir.
Ou seja, rejeitamos profundamente uma escola pública que se diz inclusiva e que humilha e marginaliza alguns cidadãos e é aí, nas escolas e nas cidades-comunidades onde existem tão gritantes desigualdades sociais e tão profundas segregações urbanas, que é preciso agir. Esta é uma dimensão política fundamental da nossa ação. As escolas públicas das nossas cidades não podem continuar, silenciosa e despercebidamente, a deixar cair alguns cidadãos, sob o argumento de que é um “fenómeno residual” (que, na realidade, ainda engloba muitos milhares de jovens). Para estes a escola e a sociedade de hoje são muito mais cruéis do que eram quando a taxa de abandono escolar era de 40 ou 50%, como lembram Dubet e Duru-Bellat (2020).
O nosso sonho, que implica a mobilização cultural, social e política de muitos parceiros, além das escolas, é que não haja na cidade um só aluno deixado para trás, seja sob que pretexto for. Nessa altura, o projeto desarma-se, de um dia para o outro. Se fossemos uma escola, tenderíamos a autojustificar a nossa importância e a investir múltiplos recursos para assegurar a nossa sobrevivência.
“Depois de 3 anos no 5º ano, cheguei a passar para o 6 ano por causa da idade... Tiraram-me da escola de G. Acabei por ficar um ano e pouco sem andar na escola, estava em abandono. Fui chamada vezes sem conta o tribunal por causa da escola. Mandaram-me para a escola de S.M., onde também não me adaptei. Tibe problemas com alunas, professores e funcionários, continuei a ser chama a tribunal, até que decidiram mandar-me embora outra vez. A minha mãe tentou inscrever-me em imensas escolas e não fui aceite em nenhuma, até que fui chamada de novo a tribunal e me falaram do Arco maior. Fui entrevistada e aceite no Arco 3, estive lá dois anos a completar o 9º ano. A minha passagem pelo Arco foi uma experiência incrível, foi lá que eu “cresci” e me tornei quem sou hoje, aprendi imensas coisas.
Sofia Bessa, 2022
B
A pedagogia do Arco Maior
Aprender com os alunos a educar os alunos.
Desde há onze anos, tem sido o próprio trabalho diário junto de cada jovem que nos é confiado, acompanhando-os e ajudando-os a erguer-se como alunos-sujeitos-pessoas-cidadãos, que nos tem educado a educá-los. Crescemos educacionalmente em conjunto, educadores e educandos. Estes foram e são o nosso mais importante recurso educacional.
Em Equipa Pedagógica (EP), em cada polo, refletimos e agimos em conjunto, professores e técnicos, dia a dia, semana a semana. Tudo está sempre em aberto, não há caminhos pré-formatados, o acompanhamento da EP a cada aluno/a vai-nos dizendo qual o melhor trajeto de aprendizagem e de desenvolvimento seguir.
Uma pedagogia em construção
Desenvolvemos uma pedagogia assente no paradigma educacional do cuidado, que pode ser declinada em nove pontos; neles podemos perceber uma pedagogia que investe na resiliência.
1.criação de laços e relações de confiança: procuramos criar laços num clima de hospitalidade, no qual se cultiva (i) o espaço e o tempo para cada um/a ser, estar e crescer, o espaço e o tempo que forem necessários, (ii) a aceitação recíproca, sem recriminações e sem rótulos, e (iii) a paciência; estas são marcas distintivas de uma pedagogia que nos permite comunicar e olhar juntos para diante. Num quadro social e político que tende a liofilizar a educação, o Arco Maior procura torná-la humanamente mais espessa, gerando relações de confiança. Aprendemos: a ternura cura. Disso estamos certos, alunos e educadores; acreditamos, como Ganovetter, na “força dos laços frágeis” e no poder educativo do amor que envolve as nossas ações.
“Com altos e baixos na minha vida, nunca estava bem mentalmente, até ao dia que me apareceu o Arco Maior na minha vida. Foi uma sensação fantástica. Senti-me integrado, senti que ninguém me via de maneira diferente. Aqui posso mostrar a pessoa que sou e sei que ninguém me vai apontar o dedo. No Arco aprendi muita coisa, melhorei a minha escrita e a minha leitura. Penso que cresci como pessoa e cada dia que passa cresço mais ainda.”
Fred Viana, 2015
“(...) Que paciência que têm para (...) aturarem crises existenciais, ajudarem a mudar ideias e padrões enraizados e a darem-me só tempo e calma. Tinha dificuldade em perceber algumas questões e comportamentos, mas tinha sempre alguém que me queria explicar e fazer perceber o seu lado e a verdade por detrás de algumas decisões.
Quando não dava abertura para diálogo, escreviam-me cartas para que eu lesse e não pudesse fugir. Obrigado por fazerem isso, até hoje tenho as cartas e leio quando preciso de encontrar sentido. Agora perguntem-se: no nosso dia-a-dia, em casa, no trabalho, na escola, quem faz isso? Simplesmente não querem saber, não há tempo para “frescuras” como dizem. O tempo é o melhor presente que podemos dar aos outros.
O Arco trouxe-me a vontade de me curar e trouxe-me a vontade de ajudar. (...) Sou uma sortuda e sinto-me amada e no fim é isso que importa. (...)”
Inês Leorne, 2023.
2.re-conhecimento: o que mobiliza os professores e técnicos é co-construir, com cada jovem, um novo conhecimento sobre si e sobre o contexto, um novo olhar e uma re-descoberta feita de histórias e vivências em comum, de respeito por identidades-percursos de vida sempre tão duros e complexos, com tantos sofrimentos e traumas, por vezes com danos aparentemente irreparáveis. Por isso e para isso, nos aproximamos dos alunos, com a distância a que o respeito pelas suas fragilidades obriga, e nos colocamos ali ao seu lado, com disponibilidade e como um apoio permanente, cheios de esperança, como “erguedores”.
Aprendemos: sem reconhecimento não avançamos, não há progresso.
(estamos sempre diante, como diz J. Esquirol, do “incrível facto de cada um ser alguém”, (...) mesmo alguém com dificuldades, assim “rente ao chão, como todos, mas alguém capaz” (Esquirol, 2024, p.53))
“Nunca pensei ter a capacidade de poder fazer o que tenho vindo a fazer. Quero agradecer aos professores tudo o que fizeram por mim. Sei que não sou muito de esperar, mas estes professores fizeram-me ver que não vivo sozinho neste mundo e que tenho de respeitar os outros. Foram os setores que mudaram a minha vida por completo.”
Hugo, 2016
3.atenção e escuta: sem as atitudes de atenção e escuta permanente por parte dos educadores (professores e técnicos, em equipa), é impossível respeitar e compreender as pessoas que temos diante de nós como alunos, nem conseguimos descobrir com eles os “interesses” que os podem fazer erguer e levantar-se a si mesmos como alunos-sujeitos-pessoas-cidadãos.
Repetimos sempre entre nós: se não escutas, não fales. É colossal o risco de reprodução de estereótipos, bem como a nossa inaptidão para co-construir um outro modo de ensinar-aprender.
4.intencionalidade e sentido: identificamos e construímos, em equipa de educadores e com muito cuidado e discernimento crítico, a intencionalidade educativa de tudo o que fazemos e do que decidimos não fazer. Procuramos impregnar de sentido todo o trabalho escolar e todas as atividades de alunos e educadores, tendo como finalidade favorecer o lento e progressivo desenho de novos sentidos, de renovados projetos de vida. Só nesse ambiente de busca permanente de sentido educativo, por parte dos educadores e dos alunos, podemos mobilizar cada uma e cada um para as aprendizagens e para o seu próprio desenvolvimento;
Exemplos: uma visita de estudo, um debate, uma Assembleia de Alunos, um gesto/atitude diante de um comportamento disruptivo, as palavras que se usam nos momentos de tensão e nos de celebração, as atividades educativas na cozinha, o modo de estar à mesa, os gestos e as palavras que acompanham uma refeição, um trabalho prático na oficina, a reflexão individual sobre a falta de assiduidade e pontualidade, a reflexão pessoal sobre os comportamentos inadequados, ... e à força de procurar o sentido em tudo o que fazemos e não fazemos, os educadores e os jovens, muitas vezes, descobrem-no.
Aprendemos: tudo o que fazemos (e o que não fazemos) tem de ter uma intencionalidade educativa.
5. participação: em cada dia, valorizamos uma ativa e permanente participação dos alunos no Arco Maior e no seu percurso educativo, pois essa constitui uma das condições-base para o seu ressurgimento positivo como alunos-pessoas-cidadãos. A participação estende-se por muitos e pouco habituais domínios, em contexto escolar tradicional, desde o currículo à avaliação, desde a definição das regras de funcionamento da “escola” à organização e gestão dos espaços, desde as saídas do Arco Maior e das visitas de estudo à organização dos turnos na cozinha, desde as regras relativas aos telemóveis aos “estágios semanais” em instituições da comunidade, etc.
Realizamos assembleias de alunos pelo menos uma vez por semana e aí tudo pode debatido e redefinido. Aprendemos: a participação é a chave do compromisso.
6. valorizamos diariamente a mesa comum: em cada dia um grupo de alunos prepara a refeição (todos os alunos participam nesta atividade uma vez por semana), com o apoio de um formador de cozinha, e todos os dias almoçamos juntos.
Nunca tínhamos suspeitado que a mesa fosse uma fonte tão rica de aprendizagens quanto ao saber estar e ao saber ser, ao aprender a ouvir, a falar com mais correção, a respeitar o outro e a desenvolver a empatia. Aprendemos: a mesa é uma poderosa fonte de aprendizagem e desenvolvimento.
7. um peixe por dia: damos valor às pequenas pedras que vão sendo diariamente recolhidas, mesmo despercebidamente, pois será com elas (esperamos) que cada jovem pode vir a construir um novo projeto de vida, onde possa morar mais dignamente, vir a “dar a volta” e (re)começar a trilhar um novo percurso de desenvolvimento, com sentido para si mesmo e apoiado pela comunidade. Apoiamos os jovens tanto na sua inserção socioprofissional imediata como depois disso, enquanto precisarem de nós.
Entre estas pedras estão: uma conversa realizada com um educador que gerou alguma satisfação e até alguma alegria; uma visita na cidade, que fez descobrir oportunidades de convivência e até possibilidades de inserção social; a escrita de um texto, ainda que pequeno, depois de tanto tempo sem escrever; a realização de um desenho que narra uma história pessoal e que obriga a olhar de novo para o percursos e os intervenientes; a realização de um exercício ou um jogo do princípio ao fim, adquirindo autoestima; uma apresentação que se conseguiu fazer aos colegas acerca dos resultados de uma pesquisa; um passeio a pé, regado por uma conversa difícil mas saborosa com um/a educador/a; ...
Aprendemos que sermos pacientes e persistentes é fundamental.
8. o espaço é de facto um importante educador: aprendemos a decorar os espaços que nos são disponibilizados envolvendo sempre os alunos para criar ambientes acolhedores e propícios ao diálogo e ao encorajamento. Ao longo dos anos refizemos muitos espaços, desde os refeitórios, aos corredores e às salas de aula, tornando-os promotores de uma educação verdadeiramente inclusiva, envolvendo sempre os alunos e os projetos interdisciplinares.
Aprendemos a envolver sempre os alunos na reconstrução dos espaços escolares, para os tornar seus e, por isso, educativos.
9. não desistimos nunca de nenhum aluno ou aluna: somos muitas vezes identificados pelos alunos, pelas suas famílias e pelos seus técnicos de apoio socioeducativo (quando eles estão institucionalizados) como pessoas que acreditamos mais neles do que eles próprios. Procuramos sempre a via do encorajamento e da responsabilidade, em vez de seguirmos a via, por eles herdada das escolas, da punição repetida.
Aprendemos: temos de estar sempre aqui para cuidar.
“Passar fome, não ter roupa para vestir, sapatilhas, não ter água e luz em casa, é complicado, ver as pessoas que mais queremos bem, estarem mal é muito revoltante e mais ainda não poder fazer nada (...). Hoje tenho o 9º ano e emprego graças ao Arco Maior, nunca desistiram de mim, nem nunca os vi desistir de ninguém.”
Inês Leorne, 2016
A pedagogia pode muito.
Ao fim de onze anos de trabalho socioeducativo e tendo já acolhido mais de 550 jovens, as nossas três prioridades são claras: primeiro a pedagogia, segundo a pedagogia e, terceiro, a pedagogia. É a pedagogia, e não uma parafernália de técnicos a intervir em cima de cada aluno/a e uns em cima dos outros, é este paradigma educativo do cuidado que pode fazer renascer vidas destroçadas e ajudar a reparar mentes profundamente perturbadas.
A pedagogia não pode tudo, já o percebemos, com alguma insatisfação, frustração e realismo, mas pode imenso. A verdade é que esta pedagogia, desenvolvida neste contexto escolar alternativo concreto, tem sido o alfobre de imensos milagres de renascimento, ou seja, de resiliência.
Como assinala Isabel Baptista, falamos aqui de uma educação que é “pautada por valores de um humanismo relacional atento à “verdade de cada rosto”, na consciência de que a interpelação mais inquietante e urgente nos chega, sem qualquer dúvida, dos rostos marcados pelo sofrimento e pela exclusão (Baptista, 1999, p. 81). Por isso, é tão necessário aprofundarmos o conhecimento pedagógico-social no campo de uma educação escolar que se deseja universal.
Simone Weil lembra que o mais importante trabalho pedagógico a realizar com crianças-alunos que vivem nestas condições consiste em “educá-las aos seus próprios olhos”, ou seja, e explica: “a primeira coisa a fazer com eles é ajudá-los a recuperar ou preservar, conforme o caso, o sentimento da sua dignidade” (idem, 61). Só isso pode transformar em confiança a revolta e o ódio que tantos destes alunos-crianças carregam.
“Estar no Arco mostrou-me uma visão e essa era que quaisquer que fossem os problemas, estávamos todos juntos para os resolver. (...). Estar no Arco ajudou-me a construir a minha vida. Ajudaram-me a encontrar emprego, depois de concluir o 12º ano. (...). Com isto só quero agradecer por tudo o que me fizeram, pela grande atenção que me deram e pelo carinho. Estar no Arco trouxe-me grande conforto num momento de dor e não hei de esquecer esta generosidade.”
Pedro Gomes, 2023
C
A gestão do currículo
Trabalho por projetos interdisciplinares
O currículo prescrito pelo Ministério da Educação (para o PIEF, no ensino básico, e para o EFA , no ensino secundário) é redesenhado pelas Equipas Pedagógicas de cada polo, após a aprovação das respetivas matrizes curriculares pelo Ministério da Educação (ME).
A gestão curricular no Arco Maior tem um objetivo claro: motivar, envolver, despertar a curiosidade, mobilizar o interesse e a vontade em conhecer e aprender. Por isso, esta gestão subordina-se a quatro orientações: contextualizar as aprendizagens e o desenvolvimento de cada aluno, seja na sua trajetória de vida, seja na sua cidade, no país e no mundo atual; promover as competências socioemocionais que permitam que cada aluno se descubra a si mesmo, aos outros e à cidade e aprenda a conviver; favorecer a aquisição de “aprendizagens essenciais” das diferentes disciplinas do currículo, seguindo os diferentes pontos de partida à chegada ao Arco Maior; incentivar a formulação de novos projetos de vida, no quadro de uma reintegração socioprofissional ou escolar pautada pelo respeito e pela dignidade de cada um.
Cada ano letivo é organizada, em cada polo, uma sequência de seis a oito projetos interdisciplinares comuns ao conjunto dos alunos. Estes projetos comuns nascem de problemáticas contextuais habitualmente tratadas pelos e com os alunos, surgem de problemas e desafios do quotidiano, partem de perguntas que são formuladas conjuntamente pelos professores (com base nas Aprendizagens Essenciais e nas experiências de trabalho com esta população) e pelos alunos (o que desejariam saber sobre...porque é que aconteceu aquilo...).
Estes projetos são, habitualmente, acompanhados por grandes quadros-murais (que estão afixados na sala comum), que descrevem a execução individual das atividades educativas e a consecução dos “produtos finais”.
Além dos projetos interdisciplinares comuns, geram-se também projetos individuais sempre que isso se revele essencial para mobilizar alguns alunos para um “trabalho escolar” que não querem realizar (porque “não sei nada”, porque “não sou capaz”, porque “não vale a pena”, porque “não quero”).
“A paciência connosco era incrível, as aulas eram muito dinâmicas e produtivas, principalmente as aulas com o professor Ricardo de TIC”
Bruno D., 2023
Oficina Polivalente de Projetos Profissionais
Além destes projetos existem Oficinas, integradas na OP3-Oficina Polivalente de Projetos Profissionais. Estas Oficinas, instaladas no Polo 1, podem ser frequentadas por qualquer aluno, um dia por semana (podem ser mais, no caso de Projetos Individuais que estejam articulados com as Oficinas). Aqui os alunos desenvolvem aprendizagens em áreas profissionais, podendo vir a realizar UFCD-Unidades de Formação de Curta Duração, que poderão ser úteis para a sua integração socioprofissional e para o prosseguimento de estudos. Trata-se de trabalho oficinal, com projetos práticos e de “iniciação profissional”, pois o foco incide sobre a mobilização da vontade de cada aluno/a para aprender e para querer experimentar outros sentidos para o seu quotidiano e para o seu futuro.
Estas Oficinas incidem sobre domínios que podem ser úteis à sua inserção socioprofissional: restauração/cozinha/mesa-bar, eletricidade, mecânica-auto, pintura e marcenaria, moda/têxtil, horticultura e cabeleireiro.
“Foi no Arco que aprendi que podemos realmente ter uma segunda oportunidade, que decidi deixar o vício do tabaco. No Arco também fiz um trabalho que me ajudou a concluir o 9º ano, aliás através de um dos projetos da professora Isabel, que era restaurar móveis, ganhei o gosto pela área da carpintaria, a qual exerço há mais de 4 anos.”
João B. Rocha, 2023
Os roteiros individuais (ROAD)
Cada aluno, em cada projeto e oficina, conta com um Roteiro de Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento- ROAD. Este roteiro é co-construído entre a Equipa Pedagógica e cada aluno e compreende os objetivos comuns e os objetivos individuais, formulados tanto em termos de aprendizagem, o que inclui os saberes das diferentes disciplinas do currículo, devidamente selecionadas para cada projeto, como em termos das competências socio emocionais (CSE) a desenvolver no mesmo período do projeto.
Cada ROAD de cada aluno é acompanhado e monitorizado semanalmente/quinzenalmente por um Orientador/a Educativo/a (tutor), tendo em vista avaliar as condições da sua concretização, favorecer o alcance dos objetivos inicialmente co-definidos entre Equipa Pedagógica e cada aluno e, eventualmente, rever e/ou alterar objetivos e/ou atividades.
O ROAD contém todos os elementos necessários à avaliação dos alunos (em cada projeto e em cada trimestre/semestre).
Estes roteiros individuais ROAD, que adotamos no ano letivo de 2022/23, vieram responder à tripla necessidade de: (i) focarmos o trabalho conjunto de alunos e professores, de modo personalizado; (ii) podermos seguir quotidianamente, jovens e educadores, um roteiro-referencial que é muito concreto e que a todos orienta e responsabiliza; (ii) dispormos todos de evidências de um caminho, de uma pegada pedagógica que se vai desenhando, e que, por vezes, aparenta ser feita de coisa pouca ou nenhuma, tal é a natureza dos pequenos passos que vão sendo dados.
As competências sociais e emocionais
Para a aplicação e desenvolvimento das competências socio emocionais seguimos o modelo CASEL- Collaborative for Academic Social and Emotional Learning. Definimos o que é cada competência e estas são inscritas em três grandes dimensões, Ser, Crescer e Pertencer, e construímos um referencial acerca do como cada uma das competências pode ser desenvolvida em contexto escolar (com muitas sugestões de atividades específicas).
“A minha vida antes do Arco: eu era uma pessoa sem foco e sem qualquer tipo de disciplina sem ambição e quando cheguei ao Arco embora o período de adaptação no início tenha sido complicado, percebi o quanto o projeto me podia dar. Então após o ano no Arco consegui criar um foco, ganhei disciplina e muita ambição por vencer na vida e se não fosse o Arco não teria dado esse passo. A passagem pelo Arco foi muito importante porque me mudou como homem e me permitiu crescer e adquirir capacidades para o mercado de trabalho.”
Serafim Fernandes, 2023
Encorajar cada jovem
Este modelo de desenvolvimento curricular, de flexibilidade total, visa encorajar sempre cada aluno/a a desenvolver um trabalho escolar concreto e com sentido, que o/a implique e mobilize e que faça dos saberes disciplinares recursos que são constante e adequadamente geridos num quadro de motivação e de sentido para o “trabalho escolar”.
Proporcionamos um ambiente educacional que cria atividades-momentos onde cada aluno-pessoa-cidadão possa pescar “um peixe por dia”, por mais pequeno que seja, mesmo quando o dia é feito de resistência e desvario.
Gentileza e firmeza guiam a nossa ação pedagógica.
Já aprendemos com os jovens que estes ouvem muito mais e melhor as nossas ações do que as nossas palavras.
Oriundos de escolas onde abundam grandes princípios morais e contínuos discursos moralistas, preferimos trilhar com estes adolescentes a ética do cuidado: caminhando ao seu lado, “sujando as mãos” com eles, falando pouco e agindo, indagando sempre o sentido.
Até que um dia, por acumulação e interseção de pequenas conquistas, possa ser dia de descoberta de um novo objetivo de vida, dia da decisão de percorrer uma nova trajetória de vida, dia de mais e maiores recomeços.
Até que um dia partem para desenhar novas vidas, levando as fragilidades consigo, mais reconciliados com a sua história e mais resilientes.
Afinal, é para isso que existimos.
“A cada dia que passava sabia que era uma missão para cumprir, não era apenas realizar trabalhos que me eram propostos, era e sempre foi alimentar os sonhos que dentro de mim viviam. (...) O Arco Maior foi muito importante para que eu realmente descobrisse a pessoa que queria e sabia que deveria ser. (...) A cada dia que passava e a cada presença no Arco sabia que só sairia de lá com os trabalhos terminados e com a sensação de que mais um dia foi produtivo. (...) hoje o meu sonho tornou-se realidade e sem o apoio do Arco Maior não teria a coragem de enfrentar os meus medos para hoje ser Soldado do Exército Português. Com orgulho hoje digo que defendo o meu país.”
Lara Ribeiro, 2023
D
O modelo organizacional
Inscrição no sistema público de educação
Somos um projeto socioeducativo, não somos nem queremos ser uma escola. Sendo uma alternativa pedagógica, não somos uma alternativa organizacional, não queremos ser uma escapatória que alguns Agrupamentos Escolares engendram para encaminhar os seus alunos classificados como “em risco” ou “muito problemáticos”. A nossa proposta é transitória e visa a reintegração social e educacional dos jovens que nos são confiados (e, como disse, o nosso sonho é deixar de existir).
Os adolescentes chegam-nos pela mão das CPCJ, das Instituições de Acolhimento (quando se encontram retiradas do meio familiar), da Segurança Social, dos Tribunais e até dos próprios amigos do bairro, que já conheceram o projeto. Formamos grupos de 10-12 e, como somos reconhecidos pelo ME e temos um protocolo com três Agrupamentos Escolares, abrimos turmas PIEF e EFA nesses Agrupamentos.
Este processo permite que nos sejam afetos os professores para lecionar estas turmas, em função das matrizes curriculares por nós adaptadas, após aprovação do ME.
Funcionamos por polos, atualmente quatro, geralmente com duas turmas cada, em casas e em instalações escolares que nos são cedidas para este efeito.
Autonomia de ação pedagógica
Cada polo conta ainda com dois professores coordenadores, em mobilidade estatutária, afetos a tempo inteiro, que são os pilares permanentes da ação pedagógica do Arco Maior e que articulam o trabalho colaborativo dos professores e técnicos.
Estes professores coordenadores, a equipa de docentes afetos às turmas e o técnico TIL de cada polo do Arco Maior, ou seja, a Equipa Pedagógica, funciona sob coordenação pedagógica autónoma do Projeto Arco Maior, que é detido pela Associação Arco Maior (criada em 2019).
“Em 2022, consegui completar o 9º ano. Hoje, acredito mais nas pessoas e na vida, e consigo olhar para o futuro com mais esperança. O Arco Maior representa para mim uma família e um lugar onde consegui encontrar e dar afeto”
Marco 2021
Trabalho colaborativo semanal
Todas as semanas, os professores de cada polo trabalham em conjunto durante quatro horas letivas, revendo a semana que passou e preparando os próximos passos. As adequações curriculares são constantes (mormente devido à falta de assiduidade regular dos alunos) e são fundamentais, tendo em vista motivar e encorajar sempre e de novo cada aluno/a. Este trabalho colaborativo é igualmente importante para se praticar uma adequação “just in time” das propostas curriculares de cada projeto interdisciplinar, seja para o conjunto da turma seja para cada aluno/a individualmente.
Como o ME não nos permite ter professores afetos a tempo inteiro ao Arco Maior e como todos os anos temos de ajudar o conjunto dos novos professores e técnicos a inteirarem-se da nossa pedagogia (um suplício de Sísifo, que nos esgota), este labor conjunto semanal é fundamental, a par do trabalho constante dos dois coordenadores de cada polo, a cerzir toda a ação da equipa pedagógica.
Parceiros
Além do apoio principal do ME, contamos ainda com várias instituições que nos facilitam o exercício da autonomia pedagógica, administrativa e financeira que nos é reconhecida e nos asseguram o funcionamento diário. Destaco a família do saudoso amigo Sr. Alexandre Soares dos Santos, que nos financia a maior parte da atividade diária, a Câmara Municipal do Porto, a Fundação La Caixa/BPI e as Santa Casa da Misericórdia do Porto e de Vila Nova de Gaia, que nos cedem espaços. Contamos ainda com outros parceiros em iniciativas educacionais correntes.
Concluindo
Liberdade
Cada dia é um tempo de recomeços. Um tempo de esperança, pois nada está fechado, tudo pode acontecer e isso é a educação. Não precisamos de repetir nada, só porque sempre foi assim.
Como disse Saint-Exupéry, em “O Principezinho”, o que torna belo o deserto é que ele esconde um poço em algum lugar e que, se o escutarmos, acordamos o poço e ele põe-se a cantar.
Temos liberdade de ação e contamos com instâncias e tempos de colaboração semanal (interdisciplinar, interprofissional e interinstitucional) para nos focarmos e voltarmos a focar no essencial do nosso trabalho socioeducativo, de reintegração social e escolar.
“Sempre fui muito reservada, sentia-me de parte, pois sofri durante muito tempo de bullying pela cor da minha pele. No Arco não percebia que estava numa escola, sentia-me como se estivesse em casa. No Arco, de facto, somos mesmo como uma família enorme; não de sangue, mas pelas nossas histórias, por criarmos momentos bons e maus, conseguimos discutir vários temas como se fossemos irmãos. Se os alunos, antigos ou novos, precisarem de ajuda de alguma forma, o Arco tem sempre a porta aberta.”
Nair Fançony, 2023
Nota final
Parece tudo extraordinário, não é? E até parece tudo tão simples!
Mas é tudo difícil, mesmo muito difícil! E, algumas vezes, os recomeços não acontecem e o que acontece é o internamento compulsivo, a prisão ou o mero abandono definitivo desta oportunidade socioeducativa alternativa (perdemos cerca de 14% dos jovens que nos são confiados).
Entretanto, esta continua a ser a nossa luta, até que não haja mais escolas públicas a humilhar e marginalizar alguns alunos-sujeitos-cidadãos.
Joaquim Azevedo
Janeiro de 2025
Post-Scriptum
School to Prison Line
No dia 23 de agosto de 2018, um grupo de jovens ingleses colou, no Metro de Londres (Nothern Line), em cima dos mapas com a descrição da linha e das estações, outros intitulados “School to Prison Line”. Estes mapas foram apresentados como um protesto contra o modelo escolar que “perde” todos os dias 35 jovens e contra o modelo de avaliação e certificação existente, o GCSE, tendo sido colocados no próprio dia da apresentação dos resultados obtidos nestas avaliações externas. Dizem eles, num texto colado ao lado, num grande cartaz: “Today is GCSE results day. While most pupils across the country are excitedly waiting for news about their future, thousands remain left behind. Every day, 35 pupils (a full classroom) are permanently excluded from school. Only 1% of them will go on to get the five good GCSEs needed to succeed. It is the most disadvantaged children who are disproportionately punished by the system. We deserve better. We are a group of South London students who believe in empathy not exclusion. We demand a more compassionate education system and a supportive approach to behaviour and discipline. And we demand schools are given the financial resources to make it possible.”
A Linha proposta por estes jovens tem as seguintes estações (adaptando ao caso português): “ordem de saída da sala de aula”, “medida disciplinar corretiva”, “medida disciplinar sancionatória”, “exclusão temporária”, “exclusão permanente”, “escola especial”, “estabelecimento prisional para jovens” e, finalmente, “prisão” e “reincidência”, estações apresentadas em círculo fechado. Logo à saída desta “nova linha do metro”, após a estação relativa à “ordem de saída da sala de aula”, existe uma derivação para uma outra Linha, mas que é apresentada como estando “definitivamente encerrada”, que é composta pelas estações “empatia”, “apoio” e “sucesso”.
Este movimento, que retoma algo já com tradição nos EUA, surge como uma contestação pública a uma escola obrigatória, seletiva e injusta. Ela é injusta sobretudo para com os que estão mais longe dos seus códigos culturais, os mais pobres e filhos dos mais pobres e dos menos escolarizados (os negros e os latinos são a grande maioria destes jovens, nos EUA), a viver geralmente em ambientes urbanos violentos já de si parcialmente excluídos. Sem um diploma básico de estudos, a sua exclusão escolar constitui uma efetiva condenação.
Existe, de facto, cá como lá, uma violência escolar institucionalizada que se tende a administrar como a coisa mais natural e naturalizada do mundo. A cultura escolar dominante, que se diz democrática, não tem lugar para todos, é excludente.
Não basta ao sistema escolar cumprir a lei, tem de ser justo. E não o é para milhares de jovens. Entre nós, estes pouco se manifestam nas estações de metro, mas manifestam-se bem na indisciplina, nas agressões, revoltas e na violência, no fechamento nos seus bairros, na delinquência, na marginalidade, no consumo de drogas. Só não vê quem não quer ver. Como muito bem dizem os jovens de Londres (está lá tudo, o problema e a solução), é preciso ter compaixão, amar estas realidades duras que são a pobreza e as injustiças associadas à exclusão e querer dar-lhes luta, mas uma luta a sério, anos a fio, socialmente participada e fortalecida.
Sempre foi mais cómodo proclamar uma vaga ideologia de justiça do que ser mesmo justo para com quem temos realmente diante dos nossos olhos. Estamos repletos de belas proclamações morais, faz-nos muita falta sujar mais as mãos na ética do cuidado.
Referências
Azevedo, J. (2023). School participation in marginalization and school dropout: the case of Portugal. Education Policy Analysis Archives, 31 (60).
Azevedo, J. (2024). Modo de produção da exclusão escolar. Olhar a escola a partir dos excluídos. Fundação Manuel Leão.
Baptista, I. M. de C. (2025). O princípio moral e intelectual da hospitalidade como paradigma pedagógico-social. Revista Portuguesa De Investigação Educacional, (29), 1-12. https://doi.org/10.34632/investigacaoeducacional.2025.17554
Dubet, F. & Duru-Bellat, M. (2020). L’école peut-elle sauver la démocratie? Seuil.
Esquirol, J. M. (2024). A escola da alma. Da forma de educar à maneira de viver. Paulinas Editora.
Weil, S. (2005). Espera de Deus. Assírio e Alvim.