Um peixe por dia

A dimensão de uma ambição humilde

No Arco Maior acolhemos jovens que abandonaram as suas escolas, depois de, em geral, terem sido eles mesmos abandonados por elas. A carga de tensão, de agressividade e até de violência que, entretanto, se gerou nas escolas assume, por vezes, contornos muito difíceis de gerir por parte de ambos os lados. Importa perceber melhor como se geram estes conflitos, para melhor os podermos pensar no trabalho quotidiano, no Arco Maior.

Uma violência institucional que conduz ao abandono escolar

A obrigatoriedade de frequência escolar, prolongada até aos 18 anos, tendo sido adotada como um bem comum e numa perspetiva positiva, pode constituir ao mesmo tempo uma violência sobre as crianças e jovens, sobretudo quando:

  • elas e eles vivem situações muito difíceis, familiares e pessoais;

  • a escola nada faz de substancial para mudar a sua proposta educativa, insistindo em aulas e mais aulas, sempre ao mesmo tempo, do mesmo modo, ao mesmo ritmo;

  • reprova sucessivamente algumas crianças e jovens (uma, duas, três, quatro, cinco vezes, como acontece com os jovens que acolhemos) oferecendo sempre a mesma proposta curricular.

 

Esta violência institucional espalha-se e entranha-se em quantos se sentem mal na escola e não podem fazer outra coisa nas suas vidas que não seja exatamente permanecerem onde têm dificuldade em estar, onde não são reconhecidos e, por vezes, onde nem são desejados.

 

Acolher todos e cada um, numa escola democrática e justa, é aceitar a máxima diversidade, seja de capacidades e de conhecimentos, seja de expectativas, de interesses e de atitudes.

 

Esta diversidade inclui ensinar e educar quem se sente mal na escola que lhes é oferecida e quem simplesmente, no modelo que lhes é proposto, não quer aprender.

 

Esta atitude negativa face à escola tem de ser compreendida e tem múltiplas causas[1]:

  • a própria obrigatoriedade escolar, de tão longa duração, que provoca uma reação negativa e de cansaço da parte de alguns adolescentes;

  • o facto de a escola oferecer sempre o mesmo, do mesmo modo e de forma avassaladora, diante de situações de insucesso repetido;

  • a falta de uma cultura de esforço, pessoal e familiar;

  • a ausência de hábitos de trabalho e de perseverança;

  • os problemas pessoais e familiares, por vezes com uma história longa de episódios e situações muito pesados;

  • o lugar secundário que os estudos ocupam na escala de valores do jovem e até, muitas vezes, da sua família;

  • a falta de expectativas de êxito na instituição escolar;

  • a perceção subjetiva de falta de capacidades, agravada por reprovações sucessivas;

  • o querer tudo aqui e agora e a incapacidade de adiar gratificações;

  • a concorrência de estímulos alternativos, que proporcionam gratificações mais imediatas, desde os telemóveis até às drogas leves;

  • as lacunas cognitivas de base, desde o 1º ciclo, e a pobreza de vocabulário;

  • a afetação da saúde mental  de alguns destes alunos e os problemas de comportamento;

  • a falta de vontade de estar na escola e de estudar o que quer que seja.

 

A escolarização e a integração sociocultural de todos e de cada um dos cidadãos é, pois, uma missão irrecusável.

 

O empenho colocado em combater o fracasso escolar tem de conter o esforço e a sabedoria equivalentes no combate ao grande desinteresse pela escola. Investir em melhorar as componentes socioemocionais do desenvolvimento é fundamental para estes alunos poderem melhorar o rendimento global, incluindo o académico.

 

Mas, como nem sempre as escolas estão disponíveis para acolher todos e cada um, alterando substancialmente a gestão do currículo, procedimentos, métodos e processos educativos, uma pequena parte dos alunos acaba mesmo por ser empurrada (discreta, mas decididamente) para o abandono da escola, apesar de ainda estarem abrangidos pela “escolaridade universal e obrigatória”. O que começa por ser um progressivo desinteresse, passa a "abandono oculto" dentro da escola e transforma-se, em muitos casos, em absentismo reiterado e abandono efetivo da escola, quantas vezes após processos de “humilhação institucional”.

Reconhecer para mudar a atitude de partida

No Arco Maior procuramos criar um clima educativo favorável aos jovens que abandonaram a escola, geralmente em grave conflito com a instituição escolar.

 

A primeira realidade que muda é a atitude: a disponibilidade dos professores e dos alunos é indispensável para ativar o processo de desenvolvimento humano e o processo de ensino-aprendizagem.

 

Está provado que o rendimento escolar depende mais da atitude do que da capacidade intelectual a ou b, pelo que o primeiro objetivo a trabalhar com os que não querem estar na escola, nem aprender, nem esforçar-se, nem trabalhar, é conseguir uma atitude favorável: nenhum esforço “instrucional” será bem sucedido enquanto o aluno mantiver uma atitude negativa (expectativas, interesses, predisposições, ações) e enquanto a escola alimentar a mesma atitude perante o aluno.

Para mudar esta atitude, é preciso que o Arco Maior esteja dotado de educadores capazes de despertar esta atitude positiva e que cada jovem seja re-conhecido (conhecido de novo, de um modo mais positivo e capaz de identificar capacidades e interesses de cada um) para depois ser persuadido do interesse de cada atividade que lhe é proposta, da utilidade do esforço, do sentido da perseverança, reconstruindo assim lentamente a sua vontade.

 

Como persuadir cada jovem a mudar a sua atitude? O que é que mais pode ajudar cada adolescente a “dar a volta”?

 

Registamos algumas condições:

  • compreender que é preciso ganhar a confiança do/a jovem, mediante aceitação e compreensão, e que isso requer primeiro, diálogo, tempo e persistência;

  • haver congruência na ação dos educadores e a consciência de que é preciso persistir nessa congruência, pois qualquer evolução de cada jovem será lenta e gradual;

  • termos consciência de que é mais fácil mudar uma característica, um ato concreto, do que toda uma atitude negativa (p. ex. ser pontual, usar uma linguagem apropriada, saber ler, tirar o boné à mesa, respeitar o/a educador/a);

  • é preciso contar e saber lidar com estratégias de autodefesa por parte de cada jovem, o que nos obriga a personalizar o trabalho educativo, o que o torna complexo e desafiante;

  • e, finalmente, reconhecer que é preciso capacitarmo-nos bem e de novo, como educadores, pois cada professor é diferente do outro e é preciso ter em conta múltiplos fatores que influenciam a atitude da escola e dos professores face a estes jovens.

O que se pede aos educadores do Arco Maior?

  • disponibilidade e implicação pessoal no projeto e no seu modelo pedagógico: que aprendam a situar- se diante destes jovens, conhecendo o Arco Maior, o seu projeto educativo, as suas metodologias de ensino e aprendizagem, o seu funcionamento quotidiano;

  • que aprendam a ter confiança em si mesmos (otimismo, perseverança, esperança);

  • que saibam compreender e relativizar os pequenos conflitos diários, pois aqui estão sempre a aparecer, integrando-os no quadro de uma "educação positiva" (ver adiante ponto específico);

  • que aprendam a manter a calma, pois essa é uma característica básica de professores em contexto de conflito interpessoal (reagir à tensão com: “não sei bem o que vou fazer, mas fá-lo-ei com tranquilidade”);

  • que partilhem os seus problemas e dificuldades, semanalmente, em equipa pedagógica e junto dos coordenadores;

  • que se dotem de novas capacidades de gestão da aula (diálogo, motivação, negociação, persuasão, controlo);

  • que evitem atitudes evasivas, pois se é preciso reunir certas condições para que os jovens cresçam e progridam, é preciso mesmo criá-las;

  • que aprendam a gerir os conflitos na sala de aula, com as atitudes e as ferramentas mais adequadas (advogamos a aprendizagem do modelo da “disciplina positiva”);

 

  • que nunca desistam de nenhum jovem, pois é isso mesmo que os ergue e valoriza (como eles nos confidenciam: “nunca desistiram de mim e por isso eu consegui fazer o 9º ano”).

O que se pede aos jovens?

Que correspondam ao que se lhes propõe, após escuta ativa e negociação, o que, em alguns casos, pode levar bastante tempo e implicar sucessivas tentativas, resultantes de um caminho que se vai percorrendo, com altos e baixos. O que se lhes deve, pois, pedir?

 

“Um peixe por dia”, que apanhem um peixe por dia, do modo que se revelar mais adequado e com o nosso incentivo permanente. Nem mais nem menos, até pode ser mais, mas nunca deveria ser menos.

 

Parece pouco, aos olhos de quem pode ter a barriga cheia de certezas e a cabeça cheia com os “programas oficiais” e com as aulas já todas bem programadas, mas não é nada pouco, e já este pequeno peixe por dia é de uma enorme exigência para todos.

 

É isso que temos de tentar que cada jovem alcance. Ao acolher um jovem não podemos morrer no sopé da montanha das impossibilidades. Temos mesmo de olhar para as "capabilidades", para que cada um re-construa um projeto de vida, ainda que simples e débil, mas que estruture um futuro melhor. Educação é sempre esperança, ou não é educação!

 

Não desistimos de nenhum jovem, é a nossa divisa! O psicólogo Adler chamava a isto «criar a autoconfiança». E é esse o primordial desafio que temos no nosso trabalho.

[1] Com base em: “Cómo dar clase a los que no quieren”, de Joan Vaello Orts, Ed Grao, 2011.